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Apagão de candidatos ao trabalho

Especial
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A falta de profissionais no varejo é um reflexo de mudanças culturais, barreiras trabalhistas e políticas públicas que desestimulam o emprego formal

O varejo passa por um apagão de mão de obra. Há vagas, e muitas, mas faltam interessados. Em um mercado historicamente dependente de jovens em busca do primeiro emprego, redes de supermercados relatam dificuldades para preencher vagas, alta rotatividade de funcionários e um desinteresse crescente das novas gerações pelo trabalho no varejo. A combinação de jornadas pouco flexíveis, baixa qualificação dos candidatos e benefícios governamentais que pagam o equivalente a um emprego, entre outros aspectos, tem colocado em aperto a operação dessas empresas. 

Segundo cálculos feitos pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), existem no Brasil mais de 357 mil oportunidades de emprego abertas no setor. Só na Região Sul, são mais de 65 mil. As oportunidades são para funções como operador de caixa, repositor, estoquista, balconista, açougueiro, padeiro e incluem postos de trabalho para pessoas com deficiência. As vagas são para lojas em todos os seus formatos e canais de distribuição: atacarejo, supermercado convencional, hipermercado, loja de vizinhança, loja de conveniência, mercado de condomínio, e-commerce, armazéns e hortifrutigranjeiros. 

Mas, por uma combinação de fatores econômicos, sociais e estruturais que afetam o mercado de trabalho, há um desencontro de difícil equação. Um lado reclama de salários pouco competitivos em comparação com outros setores, aliados a condições de trabalho desafiadoras (trabalho em pé, escalas longas,  domingos e feriados ocupados e chefias difíceis) e poucos benefícios. Outro lado reclama de candidatos sem qualificação básica, querendo progredir rápido demais na empresa, num ambiente de forte concorrência, briga constante por preços e altos custos de contratação. Tudo isso num momento de envelhecimento da população, entrada mais tardia dos jovens no mercado de trabalho e crescimento da gig economy (freelancers ou "bicos", geralmente mediados por plataformas digitais, oferecendo mais flexibilidade).

A falta de mão de obra qualificada é a principal ameaça para o crescimento dos negócios do setor de consumo nos próximos 12 meses no Brasil. A conclusão é da 28ª edição da Global CEO Survey, pesquisa realizada pela PwC que ouviu mais de 4.700 líderes empresariais de mais de 100 países e apresentou dados relativos a empresas de consumo especificamente aqui do Brasil, comparando-os com a média geral. A escassez de mão de obra qualificada foi indicada por 41% dos CEOs de empresas de consumo no Brasil quando questionados sobre fatores que levam a empresa a estar muito ou extremamente exposta a perdas financeiras. 

Situação desafiadora

Com cinco lojas em Alvorada, 600 colaboradores e 17 anos de história, o Max Center sente na pele os efeitos da falta de profissionais. Bruna Baggio, representante da rede, descreve um cenário preocupante. “De fato, a situação está bastante desafiadora. Agendamos uma média de 15 entrevistas por dia, mas apenas 6 candidatos comparecem. Além disso, muitos dos que contratamos acabam desistindo em poucos dias ou semanas”, relata. Esse vai-e-vem constante gera um impacto direto nas operações, comprometendo o atendimento ao cliente — um diferencial que a empresa sempre cultivou. “A sobrecarga nas equipes prejudica os padrões de qualidade que prezamos”, lamenta Bruna.

A executiva aponta que o desinteresse da geração mais jovem é um dos principais entraves. “O varejo exige esforço e dedicação, mas a carga horária não é atraente se comparada a outras opções”, observa. Para contornar isso, o Max Center investe em um ambiente de trabalho confortável e bem estruturado, além de oferecer cursos e programas de desenvolvimento. “Buscamos ser referência na região e atrair quem quer crescer”, diz ela. Benefícios diferenciados também estão no radar, como forma de destacar a empresa no mercado. Olhando para o futuro, Bruna aposta em tecnologia e automação. “Será essencial repensar as formas de trabalho e criar condições que incentivem a qualificação contínua dos colaboradores”, afirma, destacando a necessidade de equilibrar atração e retenção de talentos em um setor que exige presença física e escalas rígidas.

Qualidade caiu

Miriam Prediger, do Baita Super, com lojas em Porto Alegre, Alvorada e Viamão, confirma que a escassez de candidatos aos postos de trabalho é um problema disseminado no setor supermercadista. “Nosso turnover está em 10%, e a qualidade do trabalho caiu”, revela. Cargos como açougueiro, gerente operacional e posições de liderança são os mais difíceis de preencher, enquanto a cota mínima de PCDs (Pessoas com Deficiência) permanece descoberta por falta de candidatos. “A mão de obra qualificada está escassa, e os profissionais não têm os requisitos mínimos, como ensino médio ou cursos profissionalizantes”, explica Prediger.

Historicamente, os supermercados são porta de entrada para jovens no mercado de trabalho, mas a realidade mudou. “Os jovens que se candidatam hoje chegam sem qualificação, são tímidos e muitas vezes sem estrutura familiar”, observa. Ela atribui parte desse desinteresse à cultura de autonomia e aos benefícios governamentais. “A ideia de ser autônomo ou viver de auxílios tem se reforçado”, diz. Para adaptar-se, o Baita Super flexibilizou exigências, ampliou investimentos em treinamento e reduziu serviços ao cliente, aceitando custos operacionais maiores. Sobre a CLT, Prediger reconhece o peso financeiro: “Sim, torna a contratação cara, mas os riscos na Justiça do Trabalho seriam ainda mais altos sem ela”. A solução, por enquanto, é conviver com uma força de trabalho menos preparada e buscar formas de qualificá-la internamente.

Competição por talentos

Na indústria a situação não é diferente. Na Girando Sol, sediada no Vale do Taquari, o diretor Gilmar Borscheid e o coordenador de Desenvolvimento Humano Maigon José Pires descrevem um cenário agravado pela alta concentração de indústrias na região. “O preenchimento de vagas é desafiador. Nosso processo industrial é automatizado, e os profissionais disponíveis não têm experiência ou qualificação para operar os equipamentos”, afirma Borscheid. A competição por talentos qualificados é feroz, enquanto os jovens buscam carreiras tecnológicas, jornadas flexíveis e crescimento rápido — algo que o varejo tradicional nem sempre oferece.

Pires complementa: “Há uma alta rotatividade. A mão de obra existe, mas circula entre empresas por motivos diversos”. Para enfrentar isso, a Girando Sol foca na capacitação de líderes e no fortalecimento da marca empregadora. “Estamos qualificando nossas lideranças com programas que equilibram performance e abordagem humanizada”, explica ele. A empresa também reforça sua cultura organizacional, promovendo bem-estar e engajamento. “Queremos entender as expectativas dos novos entrantes e alinhá-los ao nosso negócio”, diz Pires. Parcerias locais para formação técnica acelerada são outra aposta, visando a suprir a lacuna de habilidades específicas que as operações demandam.

Geração que pensa diferente

Matheus Viezzer, diretor do Viezzer Supermercados, enxerga a falta de mão de obra como um problema crônico em todo o Brasil. “Tentamos minimizar oferecendo plano de saúde, bônus de assiduidade e espaços melhores para descanso, mas não é suficiente”, desabafa. Açougue, padaria e caixas são os setores mais afetados, com o quadro de pessoal sempre 5% a 10% abaixo do necessário. “Nunca consigo fechar 100% das vagas”, admite. Ele não vê melhora no médio prazo e condiciona uma solução a mudanças estruturais. “No longo prazo, talvez modernizando as leis trabalhistas”, prevê.

A resistência dos jovens a horários rígidos é um obstáculo recorrente. “Eles não querem cumprir 7h20, bater ponto ou trabalhar em finais de semana”, relata Viezzer. O assistencialismo também pesa: “Com benefícios, muitos ganham o mesmo que o inicial aqui e vão para o informal sem perdê-los”. A automação tem sido uma saída para tarefas repetitivas, mas a operação em loja depende de gente. “Essa geração pensa diferente, quer flexibilidade. Isso gera conflitos com o que a legislação exige”, diz ele. Para Viezzer, a CLT desatualizada trava o crescimento. “Se o assistencialismo diminuir, essa conta vai aparecer”, alerta, sugerindo que os próprios trabalhadores pressionarão por reformas.

Ir além de salários

Tatiane Shirazawa, CEO da Great Place to Work (GPTW), oferece uma perspectiva mais ampla sobre o que torna uma empresa atrativa. “Ser excelente para trabalhar vai além de salário alto ou benefícios como plano de saúde. É sobre confiança, consistência e coerência”, afirma. Para ela, o varejo precisa ir além de modismos — como pufes coloridos ou dias temáticos — e investir em inclusão, saúde mental e oportunidades de desenvolvimento. “É preciso envolver todos na estratégia e aceitar o erro como parte do negócio”, destaca.

Tatiane enfatiza a importância da gestão transparente. “Confiança no time permite mais autonomia, enquanto práticas consistentes refletem o propósito da empresa”, explica. Presente em 170 países, a metodologia GPTW já ajudou mais de 18 mil clientes a medir a relação de confiança no ambiente de trabalho. “Não adianta copiar benchmarks ou criar ações efêmeras. É a coerência entre discurso e ação que gera orgulho nos colaboradores”, conclui. Para o varejo, esse enfoque poderia ser um diferencial na retenção de talentos em tempos de crise.

Opção pela informalidade

O advogado trabalhista Flávio Obino Filho identifica dois fatores principais na escassez de trabalhadores em setores como o varejo. O primeiro é o aumento dos benefícios sociais, como o Bolsa Família. “O valor está próximo dos salários iniciais, então muitos optam pela informalidade, sem perder o auxílio”, analisa. Ele propõe uma transição: “É preciso regras que permitam trabalho formal com manutenção parcial do benefício e incentivos para evoluir no mercado”. O trabalho intermitente, embora formal, é evitado por esses beneficiários.

O segundo fator é geracional. “Jovens de 18 a 24 anos, impactados pela pandemia, buscam formas alternativas de renda e resistem a horários fixos, especialmente em domingos e feriados”, diz Obino. O trabalho intermitente poderia ser uma solução, mas exige adaptação das empresas. “Há um alto índice de recusa às convocações”, alerta. Para ele, sem ajustes na legislação e nos incentivos sociais, a crise de mão de obra continuará limitando o crescimento econômico do país.

Possíveis ações

O presidente da Abras, João Galassi, tem afirmado que políticas públicas de estímulo à contratação poderiam ajudar o setor a preencher essas vagas abertas, inclusive beneficiando a contratação de profissionais com 60 anos ou mais. Outra frente defendida pela entidade é a não suspensão do Benefício de Prestação Continuada para pessoas empregadas no setor. O BPC é um benefício assistencial pago pelo governo brasileiro a pessoas com deficiência ou idosos com 65 anos ou mais que comprovem baixa renda. 

O varejo, incluindo supermercados, é um dos maiores empregadores do Brasil. Em 2023, por exemplo, o setor respondeu por cerca de 25% das vagas formais geradas no país, segundo dados do Caged. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) está atuando para facilitar o acesso a vagas (Sine, mutirões) e qualificar gente (Escola 4.0, Programa Manuel Querino – PMQ), mas não há uma ação recente e específica para resolver a falta de mão de obra nos supermercados.

Em Janeiro, a Fecomércio-RS enviou à Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) um ofício propondo ações para integrar beneficiários do Bolsa Família ao mercado formal de trabalho. A iniciativa busca ampliar oportunidades, com foco em adultos sem filhos, grupo que apresentou bons resultados em projetos na cidade de Bento Gonçalves.

Embora o Rio Grande do Sul registre a menor taxa de desemprego da década, 5,1%, a Fecomércio-RS destaca desafios na qualificação e formalização da mão de obra. “Empregos são a forma mais efetiva de promoção social”, afirma Luiz Carlos Bohn, presidente do Sistema Fecomércio-RS. 

Modelo de Bento

Em Bento Gonçalves, a integração de beneficiários do Bolsa Família ao mercado de trabalho começou no ano passado e prossegue. A prefeitura realiza uma busca ativa focada em beneficiários de 18 a 40 anos que moram sozinhos. A ação inclui visitas domiciliares para validar informações do Cadastro Único e identificar quem está apto a trabalhar, facilitando a inserção no mercado. O prefeito Diogo Siqueira destacou que a meta é promover independência financeira, reduzindo a dependência do poder público. 

Até março de 2025, cerca de 50 pessoas foram inseridas no mercado de trabalho, e outras 100 tiveram benefícios cortados por irregularidades nos dados. O sucesso depende de colaborações com empresários e entidades locais, como a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e o Sindilojas. Essas parcerias ajudam a mapear vagas e conectar beneficiários a oportunidades.

 

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