Disputa de mercado
Em um setor em transformação, atacarejos crescem, redes catarinenses se instalam no Rio Grande do Sul, pequenos varejistas lutam por sobrevivência com estratégias focadas em qualidade e conveniência, enquanto o e-commerce busca seu espaço, exigindo adaptação constante.
Com quase 100 mil lojas espalhadas pelo país, a concorrência no meio supermercadista se intensifica a cada ano, entre grandes, médios e pequenos. No Rio Grande do Sul, o número de lojas pulou de 4,4 mil em 2015 para 6,9 mil em 2024, um aumento de 57%. Fatores como a expansão de atacarejos, a vinda de redes catarinenses, o avanço do e-commerce e a busca por conveniência intensificam esse cenário, desafiando lojas de todos os tamanhos a encontrar seu espaço.
A concorrência impacta diretamente a operação de uma loja supermercadista em três frentes principais: preço, clientela e margens de lucro. Quando uma grande rede abre uma unidade próxima, ela atrai consumidores com preços mais baixos, fruto de economias de escala e negociações agressivas com fornecedores. Em 2023, os cinco maiores grupos supermercadistas (Carrefour, Assaí, Mateus, Muffato e BH) responderam por cerca de 45% das vendas do setor, segundo a Abras, enquanto pequenos varejistas lutam para manter sua fatia de mercado.
A concorrência é uma consequência natural do livre mercado. Ela pode fazer sangrar seu caixa, como pode lhe impulsionar a grandes saltos. Em geral, é um empurrão para a excelência, forçando ajustes operacionais: lojas precisam reduzir custos, ajustar estoques e, muitas vezes, redirecionar sua estratégia para competir.
CRESCIMENTO DOS ATACAREJOS
O formato de atacarejo, que combina a lógica do atacado com a praticidade do varejo, tornou-se o grande protagonista do setor na última década, triplicando sua participação no mercado. O consultor empresarial e instrutor da Agas, Rogério Machado, destaca que a virada começou com a compra do Atacadão pelo Carrefour, mas foi nos últimos anos que o modelo explodiu. “O hipermercado, que dominava com seu grande sortimento de produtos alimentares e não-alimentares, perdeu apelo. As pessoas passaram a buscar preços mais baixos, e os atacarejos, com visual de armazém e custos reduzidos, atenderam a essa demanda”, explica Machado. Enquanto os hipermercados têm custos operacionais de 18% a 20%, os atacarejos operam com 11% a 12%.
O CEO da Áthuna Gestão, Leonardo Taufer, aponta que o Atacadão e o Assaí foram pioneiros nesse movimento, que ganhou força com a mudança no comportamento do consumidor. “O consumidor passou a priorizar economia, e o atacarejo se democratizou, deixando de ser exclusivo das classes mais pobres para atingir todas as camadas sociais”, afirma. Ele observa que o formato evoluiu: de grandes lojas nas margens de rodovias, os atacarejos migraram para centros urbanos, com lojas menores, de 1.000 a 2.000 m², quase como supermercados tradicionais, mas com layout despojado.
No entanto, Machado alerta que o ciclo de vida dos atacarejos pode estar próximo do fim. “Eles começaram básicos, com mercearia seca e bebidas, mas hoje oferecem frutas, legumes, verduras (FLV), padaria e açougue. O custo operacional subiu, e a vantagem competitiva diminuiu”, diz. Ele cita a proximidade de lojas como a Havan com atacarejos como um sinal da volta dos hipermercados, ainda que em formato dividido: alimentos de um lado, não-alimentares de outro. Apesar disso, o sucesso do modelo é inegável, e Taufer reforça que praticamente todas as grandes redes do Rio Grande do Sul já investem em atacarejos, muitas vezes para contrabalançar a queda nas vendas de seus hipermercados tradicionais.
INVASÃO CATARINENSE
O Grupo Pereira, sediado em Itajaí, dono das bandeiras Fort Atacadista e Comper, iniciou sua expansão para o Rio Grande do Sul em 2021. A rede anunciou a abertura de quatro atacarejos no Estado, com um investimento de R$ 150 milhões, incluindo um centro administrativo e de distribuição em São Leopoldo. A Rede Althoff Supermercados, de Criciúma, chegou em 2023, com a inauguração de sua primeira loja em Capão da Canoa. O Grupo Passarela, de Concórdia, entrou no mercado gaúcho em 2018, começando por Erechim, agora em Lajeado e Teutônia, com a aquisição de supermercados da Cooperativa Languiru. A Rede Bistek, de Nova Veneza, começou sua expansão no RS em 2020, tendo lojas em Porto Alegre, Torres e em Sapiranga.
Leonardo Taufer vê isso como algo normal: “É como uma rede gaúcha abrir lojas em uma nova cidade. Os catarinenses identificaram oportunidades no mercado gaúcho, estudaram nosso consumidor e estão sendo bem-sucedidos”. Ele destaca que o varejista local não pode contar apenas com a tradição ou a procedência para se proteger. “A concorrência não respeita fronteiras”, sentencia.
Rogério Machado atribui essa “invasão” a uma combinação de fatores. “O Rio Grande do Sul sempre teve preços médios altos, e os catarinenses perceberam que isso não se justificava apenas pela tributação. Eles encontraram espaço para crescer com preços competitivos”, explica. Ele também aponta que o varejo gaúcho, no passado, se considerava imbatível e resistia a players de fora. “Culturalmente, não aceitávamos bem os forasteiros. O GPA, por exemplo, nunca abriu lojas aqui. Mas os catarinenses não têm esse receio. Eles querem trabalhar e sabem operar com margens baixas”, diz Machado.
A entrada de redes catarinenses acirra a competição, mas Machado alerta para um cenário ainda mais desafiador no futuro. “Se redes agressivas como o Grupo Mateus, do Nordeste, ou o Assaí, de São Paulo, decidirem vir para o Sul, o impacto será devastador. Eles ainda hesitam por causa da nossa cultura, mas isso pode mudar”, prevê. Para Taufer, o recado é claro: o varejista gaúcho precisa se adaptar rapidamente, porque a concorrência, seja de Santa Catarina ou de outros estados, é inevitável.
DAVI X GOLIAS
A concorrência entre pequenos supermercados e grandes redes é uma batalha desigual, mas não impossível. Rogério Machado enfatiza que os pequenos precisam de estratégia para sobreviver. “É possível brigar com os gigantes, mas é preciso saber se posicionar. Quem ficar no tradicionalismo, lutando como se estivesse sozinho na praça, vai morrer”, alerta. Ele cita o exemplo de clientes no litoral gaúcho, em cidades como Xangri-lá, Imbé e Tramandaí, que conseguem competir com gestão eficiente e foco em nichos específicos.
Leonardo Taufer reforça que modelos como os atacarejos são fortes em categorias como bebidas, higiene, limpeza e commodities, mas são menos competitivos em perecíveis. “O pequeno precisa tirar, no mínimo, 50% do faturamento dos perecíveis, que têm maior frequência de compra. A padaria, por exemplo, atrai clientes diariamente ou a cada dois dias”, recomenda. Ele destaca a agilidade dos pequenos como uma vantagem: “Empresas familiares reagem mais rápido, porque o dono está no dia a dia, muitas vezes decidindo o sortimento diretamente.”
Machado sugere que os pequenos façam uma análise SWOT (forças, fraquezas, oportunidades e ameaças) para identificar os pontos fracos dos concorrentes. “Não adianta competir nas forças do atacarejo, como bebidas ou cesta básica. Foque nas fraquezas, onde eles não têm diferencial”, orienta. Ele também alerta que muitos pequenos sangram o caixa ao tentar baixar preços para competir diretamente com os grandes, sacrificando margens. “Às vezes, o problema não é a concorrência, mas a má gestão. A concorrência só expõe erros que o varejista já cometia, como falta de controle de perdas, roubos ou desperdícios”, observa.
Taufer complementa, destacando a importância da conveniência. “As pessoas aceitam pagar um pouco mais em mercados de bairro pela proximidade e facilidade. Isso dá ao pequeno uma elasticidade de preço que precisa ser bem trabalhada”, diz.
LOJA FÍSICA X LOJA VIRTUAL
O e-commerce no varejo alimentar ainda não revolucionou o setor, mas já aponta caminhos para o futuro. Leonardo Taufer explica que, entre 2015 e 2020, havia um temor de que as vendas online reduzissem drasticamente a relevância das lojas físicas, especialmente durante a pandemia. “Não foi o que aconteceu. O varejo alimentar ainda é dominado pela loja física, porque as pessoas valorizam a conveniência de comprar no caminho de casa ou do trabalho”, afirma. Ele reconhece, porém, que categorias como bazar, eletros e perfumaria já têm maior penetração no e-commerce, muitas vezes puxadas por varejistas especializados.
Rogério Machado destaca o trabalho do supermercado Asun, de Porto Alegre, como referência no online no Rio Grande do Sul. “Eles têm uma operação dedicada ao e-commerce, a melhor do estado”, elogia. No entanto, ele acredita que o impacto do online ainda é limitado. “O canal que mais cresce é o de lojas autônomas, sem funcionários, como as instaladas em condomínios. Isso resolve uma das maiores dores do setor: a falta de mão de obra”, explica. Essas lojas, segundo Machado, atendem à demanda por conveniência, especialmente em grandes cidades, onde segurança e praticidade são valorizadas.
Taufer aponta um obstáculo para o e-commerce alimentar: a logística. “Muitas vezes, não há quem receba as compras em casa, o que limita o crescimento desse canal”, diz. Ele sugere que os pequenos varejistas avaliem se o investimento em e-commerce vale a pena, já que os resultados ainda são residuais para muitos. “O online é complementar, uma alternativa para momentos específicos, como pedidos no fim de semana”, avalia.
Machado observa que o comportamento do consumidor reflete uma divisão clara: “No início do mês, as classes mais pobres vão aos atacarejos comprar o ‘grosso’ – arroz, feijão, bebidas. Depois, do dia 10 ao 30, recorrem aos mercados de bairro para perecíveis”. Essa dinâmica fortalece os pequenos, desde que saibam se posicionar. Ele também destaca o papel das centrais de negócios, que ajudam os pequenos a negociar com a indústria, reduzindo a dependência de grandes redes. “A indústria percebeu que não pode ficar refém dos atacarejos, que espremem suas margens. Isso abre espaço para o pequeno, mas ele precisa jogar o jogo”, conclui.
APOSTA NA QUALIDADE
Com 40 lojas distribuídas pelo Litoral, Serra, Região Metropolitana de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul, o Asun Supermercados constrói sua fortaleza em um tripé: bom atendimento, frescor dos produtos e marcas reconhecidas a preços competitivos. Para Antônio Romacho, presidente da rede, a concorrência no setor chegou a um nível “terrível”, com grandes players desrespeitando os limites do mercado. “A gente está numa esquina, vem uma loja grande e se instala do teu lado, na maior cara dura, rasgando margem e preço”, desabafa. Ele critica a prática de algumas redes que, na tentativa de atrair clientes, oferecem produtos de marcas desconhecidas e qualidade duvidosa, o que, na sua visão, desrespeita o consumidor.
Romacho argumenta que, em tempos de dinheiro curto, as pessoas não têm espaço para erros nas compras. “O consumidor quer marcas conhecidas por um preço justo. Não adianta oferecer um café que ninguém sabe de onde veio por menos de R$ 18. O que tem dentro daquele pacote? Ninguém sabe”, provoca. Para o Asun, a estratégia é clara: garantir que produtos como macarrão, sabão em pó, margarina ou café tenham sempre as marcas de referência nas prateleiras a preços acessíveis. “É isso que nos dá fortaleza. O dinheiro hoje é caro, e o cliente não pode se dar ao luxo de comprar coisas ruins”, reforça.
UNIÃO PARA COMPETIR
Enquanto o Asun aposta na força de sua marca e na proximidade com o cliente, a Rede da Gente Gaúcha, central de compras sediada em Casca, adota um modelo colaborativo para dar musculatura aos pequenos supermercados. Com 80 lojas em 40 cidades, incluindo polos como Passo Fundo, Marau e o Vale do Taquari, a rede reúne associados que enfrentam gigantes. “Nos unimos para ter condição de compra com barganha, oferecendo produtos de mesma qualidade com preços compatíveis”, explica Jacir Gabiatti Zatt, presidente da central.
A Rede da Gente Gaúcha opera com uma estratégia cuidadosa para evitar a competição interna entre seus membros. “Nossa seleção de associados considera a distância entre as lojas, para que não haja canibalismo. Tudo é pensado dentro de uma ótica de crescimento conjunto”, destaca Zatt. A estrutura logística é um dos pilares da rede: com um centro de distribuição (CD) robusto, a central garante estoque constante, especialmente dos itens da Curva A (os mais vendidos), e realiza entregas duas vezes por semana nas lojas. “Hoje, a briga está mais parelha. Temos uma logística de compras eficiente e estrutura para competir com empresas de grande porte”, afirma.
Além da força nas negociações com fornecedores, a Rede da Gente Gaúcha investe em ferramentas de marketing e suporte aos associados. Encarte virtual é publicado toda quinta-feira, e encartes impressos são produzidos eventualmente. A central também acompanha o desempenho das lojas, oferecendo suporte especialmente aos iniciantes na gestão de produtos de alta rotatividade. O grande diferencial da Rede está no atendimento familiar, uma característica típica dos pequenos supermercados. “É a emoção de estar junto com o cliente, de atender diretamente. O consumidor chega na loja, conhece as pessoas, vê o dono”, diz. Esse vínculo emocional, aliado à competitividade de preços, é o que sustenta o lema da rede: “Juntos somos mais fortes”.